domingo, 16 de fevereiro de 2020

Sons da primeira infância - formatando o script de vida

Foto: Dimitry Anikin - Viena, Áustria - Pexels



Sons que caracterizam minha primeira infância soam sempre dentro de mim.

Gratidão, mãe, por ter a iniciativa de escolher os discos de vinil que tanta diferença fizeram! A vitrola, que depois o pai deixou que eu manejasse a manivela pra que ela funcionasse e fizesse os discos rodar.... que tempo!

Se me reporto àquela menina magrela, de duas trancinhas e franja curta, vivo outra vez a magia que foi ouvir tantas músicas lindas. Danúbio Azul, de Johann Strauss, era uma das favoritas, tanto do pai quanto da mãe.

O pai ocupava de dia o quarto dos guris para pintar seus quadros (óleo sobre vidro), ficava lá o dia inteiro, com a música inspirando.  

Foi lindo! Fez cada flor ter sentido, cada folha mostrar sua beleza, cada entardecer invadir com sua magia e encantamento.

Se me reporto à mulher vivida que hoje sou, com os olhos na realidade, constato o quanto de abnegação minha mãe teve em segurar as pontas, por tantos anos, pra manutenção de um lar, apesar dos maus tratos, apenas impulsionada pela responsabilidade de criar seus filhos.

Eram mais ou menos 20 dias pintando, depois, mais 3 semanas a um mês fora de casa, vendendo os quadros e, muitas vezes, gastando um tanto com as p...

Nestes longos períodos, era a mãe que, além das lides domésticas de uma família grande (éramos 6 irmãos) dava um jeito com a horta e com as frutas que os manos (e eu, por um curto período de tempo, em relação a eles) vendiam de cesta. Vida dura.]



Foto: Engin Akyurt - Pexels


E o disparate éramos nós em colégio de freiras, super conservador,  super restritivo e exigente em relação ao uniforme e todo o demais que um colégio de elite exige (ainda hoje, pois as metodologias de ensino ainda estão no milênio passado). 

Hoje agradeço pelo acesso à educação seletiva que tive, que me proporcionou o contato com experts da música, do teatro, da prosa e da poesia. 

À época, porém, sofri muuuito com toda a rigidez e humilhação que todos nós passamos por sermos bolsistas e desprovidos dos recursos necessários, desde uma borracha e lápis até o [terrível] uniforme.... cada ano era um modelo diferente! Desde a gravatinha, blusa (ora com listras, mais listras, menos listras, ora sem listras), as pregas na saia, os sapatos específicos, as meias... o tipo de pasta... Senhor! 

Eram as "Servas do Espírito Santo" e eu me questionava se o Espírito Santo aceitava tanta exposição de desigualdade frente aos demais colegas... bullying explícito das freiras, chamando para a frente e destacando as diferenças... dizendo pra "ir lavar roupa pra fora" se não pudéssemos estudar ali... que descansem em Paz! Que bom que já foram... rsrsrs...

Mata a autoconfiança e o medo, em alguns mais que em outros, a insegurança, marcam a todos que passam por isto.

A intenção da mãe sempre foi a melhor possível. 

O pai concordava, em tese, pois quando não queria mesmo, fazia diferente, sem avisar nada. O que a deixava bastante, bastante triste... quanta dicotomia!

Por todas estas decisões do que ela, especialmente, considerava o melhor para seus filhos, o que ela considerava melhor para eles (casal) - todos os sonhos e ambições -, o resultado obtido foi apenas muita frustração e desconsolo. Em brigas intermináveis e acusações mútuas...

Aquele homem era um ser simples, queria uma vida pacata, por ele, poderíamos sair a pedir "ajutórios"... parecia não saber o que significava ter de comer três vezes ao dia, vestir-se, ir à aula... mas, assim como ela, fundamentalmente, bons.

Quando chegava o entardecer e o pai pedia para eu - com 7 anos - ir até o bar da outra esquina comprar a cachaça (eu morria de medo, pois era um bar escuro, cheio de homens bebendo), eu já sabia que a noite seria trágica, com ele, alcoolizado, batendo nela e ela, impávida, aceitando ser golpeada, como se tivesse de ser assim...

O que é o amor, mesmo? 

Como se realiza a completude em um relacionamento afetivo?

Poucos conseguem. Mas existe. E louvo os que conseguem.

Tanta coisa a ser considerada para que uma relação não se torne tóxica!

Mas, hoje sei, o pai todo aquele tempo, dias e dias, debruçado a dois palmos, no máximo, de toda aquela tinta a óleo, mais o uso da terebentina, foi ali que ele se drogou, sem ninguém, nem mesmo ele, ter a noção que isto o estragaria para sempre! Esta inalação, mais o álcool à noite, que horror! Só poderia dar no que deu!!

E se hoje ainda se ouve e se sabe de tanta violência entre dois seres que compõem uma união que, primordialmente, deveria ser de afeto, amor, carinho (e eles tentavam isto, nos bons momentos), que dirá naqueles tempos tão mais obscuros e com tantos mais deveres impostos às mulheres.

Com profunda reverência acolho todos os momentos vividos, sabendo o quão imperfeita é a espécie humana e seus dogmas, leis, costumes, obrigações, requisições e condenações.

E o quanto todos devemos continuar tentando para que a Evolução no Bem, por fim, aconteça!

Que o Entendimento ocupe o lugar da Discórdia!
Que o Amor prevaleça, em toda a sua Plenitude, o mais possível!!




https://www.youtube.com/watch?v=b4ZzOtUJm-c



Strauss: El Bello Danubio Azul / Sinfónica Ciudad de Zaragoza



Link deste post: https://diariodaultimaetapadavida.blogspot.com/2020/02/sons-que-caracterizam-minha-primeira.html


Imagens:
Dimitry Anikin - https://www.pexels.com/pt-br/foto/cidade-meio-urbano-luzes-noite-3713721/
Engin Akyurt - https://www.pexels.com/pt-br/foto/animacao-ao-ar-livre-ativo-borrao-1435537/


N.B.: Um dia após escrever este post, me deparo com uma situação semelhante a que relatei sobre bullying em escola, por parte da direção. Uma camiseta (do uniforme) com escrita nas costas 'Empréstimo', dada a um garoto cuja mãe não tinha [ainda] o dinheiro para comprá-la. Ainda por cima, escola estadual! Viram como os tempos não mudaram? A rigidez permanece! (https://www.pragmatismopolitico.com.br/2020/02/colegio-obriga-aluno-sem-uniforme-a-usar-camiseta-escrito-emprestimo.html?utm_source=push&utm_medium=social&utm_campaign=artigos)






Marise Jalowitzki é mãe, avó, sogra, irmã, tia, filha, neta, amiga, cidadã.Também é educadora, escritora, blogueira e colunista. Palestrante Internacional, certificada pelo IFTDO - Institute of Federations of Training and Development, com sede na Virginia-USA. Especialista em Gestão de Recursos Humanos pela Fundação Getúlio Vargas. Criou e coordenou cursos de Formação de Facilitadores - níveis fundamental e master. Coordenou oficinas em congressos, eventos de desenvolvimento humano em instituições nacionais e internacionais, escolas, empresas, grupos de apoio, instituições hospitalares e religiosas por mais de duas décadas.Autora de diversos livros, todos voltados ao desenvolvimento humano. Querendo, veja aqui







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