segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Alzheimer, a emboscada - 1

Ninguém fica doente porque quer. Todos querem ser amados e queridos (Imagem: Pixabay)




- Não sei o que me acontece, disse-me ela. Sento para ler no início da tarde e quando vejo, acordo quando está anoitecendo!

Mais tarde eu saberia que uma vizinha lhe dava um "comprimidinho para relaxar"... Nunca soube o nome, nem quantos tomou.

- Levanta o braço esquerdo, disse o médico neurologista, depois que ela sofreu o AVC. Ela levantou, lentamente e o neuro comentou que, em alguns casos, era assim mesmo. Ainda tinham algum reflexo, mas a memória e a psicomotricidade iam e vinham, sem aviso.

Ele também comentou:
- Ela devia estar dando sinais há muito tempo, há décadas, apenas vocês não notaram. OU não quiseram dar a devida importância.

Sim, éramos todos leigos. Se ainda hoje o tema fica cheio de névoas, que dirá há tempos atrás, o que se sabia?

Com meu avô já havia sido assim. E quem conviveu com ele tinha muito ressentimento, pea "maldade com que ele tratou todo mundo" (moravam no norte do Paraná e não tínhamos nenhum contato. Apenas vi meus avós uma vez - um dia e meio -).

Difícil.

Mulher categórica, desde sempre bastante rígida, enérgica, autoritária, não admitia réplicas. Quando eu tinha 9 anos levei uma surra tão, mas tão pesada que tive de me segurar no umbral da porta para não cair. O pai, que nunca bateu em nós, mas que delegara a tarefa a ela (por uma covardia que noutra ocasião relato a origem), quando a coisa ficava por demais pesada, ele dizia:

- Agora pode parar!

E muitas vezes ela não parava. naquela ocasião, arrematou:

- E isto é o que tu merecia levar!

Mesmo sendo criança, sentindo toda a dor do injusto castigo (qual a criança que lembra o motivo pelo qual foi castigada?), eu ainda guardei na lembrança o estranhamento pelas ações dela. Era MUITA raiva acumulada, não podia ser somente pelo que eu (ou qualquer um de meus irmãos) havia feito. Era uma ira desmesurada.

E, depois, tão amorosa e sempre, sempre dedicada. Que voz linda quando cantava em alemão as canções infantis, fazendo questão de ensinar para que cantássemos, no futuro, para nossos filhos. E quando fazia as cucas e as bolachas enfeitadas, lindas, com vários formatos e nos trazia para colocar os enfeitinhos coloridos sobre. E os jantares, as roupas bem cuidadas, o elogio de sempre, tão forte: "Todos os meus filhos são muito bonitos!"

Hoje sei, pelo que disse o neuro, apontando para o eletroencefalograma, bem no lugar onde ela tinha uma cicatriz de quase dois centímetros, que, provavelmente, ali estava a razão.

- Crânio de criança é muito molinho, toda pancada que leva afeta o cérebro. Sim, devem ter outras razões, mas aqui está um fator.

Lembrei que a mãe contava - foi mais de uma vez - sobre a agressão que recebera de meu avô quando ela tinha 2 anos e poucos meses. Incumbida de lavar os pés de seu irmão menor, ele sentadinho em um banquinho, os pezinhos dentro da gamela de madeira com água, ela agachada em frente, seu pai ordenou que não queria nenhum pingo d'água jorrando para fora da gamela. Ela lavando direitinho, o pequeno, rindo, quis brincar e sacudiu os pés. Ela tentou segurar, louca de medo do pai, mas ele gargalhando, fez ainda mais força para agitar os pés. O pai, sem dizer nada, levantou o chicote e acertou-a no rosto, abrindo o talho na testa, do lado esquerdo. Ela caiu desmaiada dentro da água e a mãe dela (minha avó) correu, muda, para socorrê-la. A água toda tinta de sangue, o irmãozinho gritando assustado. A avó botou borra de café para estancar o sangue e colocou-a a dormir. Nenhuma palavra, de neum dos adultos. 

A mãe contava esta história muitas vezes, imersa em mágoa. Tinha outras...

Vidas toscas. Vidas rudes. Cenas cruéis. Educação 'feita a facão', como se diz por aqui. No caso, feita a chicotadas. Sinto que devo escrever mais sobre tudo isto, até mesmo para serenar meu coração.

Há  anos um amigo me aconselhou a fazê-lo. Vamos indo.

Como isto é um blog com textos medianos, fico hoje por aqui. Muito há por discorrer sob este tema tão árduo e penoso, sofrido. 

Como é importante conversar, comentar, analisar, saber mais das ocorrências, até para poder entender e assimilar os fatos que nós, os que viemos após, sofremos.

Minha tentativa, a vida inteira, foi tentar entender os motivos, pra que eu pudesse perdoar. Sinto que este é o caminho.


Link deste post: https://diariodaultimaetapadavida.blogspot.com/2020/02/alzheimer-emboscada.html






Marise Jalowitzki é mãe, avó, sogra, irmã, tia, filha, neta, amiga, cidadã.Também é educadora, escritora, blogueira e colunista. Palestrante Internacional, certificada pelo IFTDO - Institute of Federations of Training and Development, com sede na Virginia-USA. Especialista em Gestão de Recursos Humanos pela Fundação Getúlio Vargas. Criou e coordenou cursos de Formação de Facilitadores - níveis fundamental e master. Coordenou oficinas em congressos, eventos de desenvolvimento humano em instituições nacionais e internacionais, escolas, empresas, grupos de apoio, instituições hospitalares e religiosas por mais de duas décadas.Autora de diversos livros, todos voltados ao desenvolvimento humano. Querendo, veja aqui








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